Uma vez convencido de que não
havia outra forma, o que me restava era ser arrastado junto com a correnteza e
desaguar no fim comum: conformismo. Mania de brasileiro. Definir os grupos:
águas caudalosas; tudo seguia na minha agonia de náufrago: em busca de uma foz
que parecia nunca chegar. Desaguei. Em dúvida. Qual caminho seguir? Em busca de
Norte, achamos “Os sete gatinhos”, que nos surgiu entre aplausos e a incerteza
do “e agora?”. Definimos os atores, seus personagens e quem ocuparia as funções
técnicas; começamos a ler o texto numa ânsia de entender aquilo tudo:
submergíamos num oceano chamado Nelson
Rodrigues. Imersos, afundávamos cada vez mais. Em doses homeopáticas.
Eu fiquei incumbido de
representar o personagem “Seu” Noronha.
Pai de família, contínuo, teofilista, pedófilo em potencial, “Seu” Noronha é a
personificação do falso moralismo social, bem como é metonímia da própria
sociedade. A parte pelo todo. Dono da verdade, todo e qualquer questionamento a
cerca de sua autoridade é considerado uma grave afronta, assim como não
respeitá-lo ou usar palavras de baixo calão pra dirigir-se a ele. Porém, o leão
tem um espinho sob sua pata: sua filha Silene. Não há ninguém que se aproxime
da pureza de Silene, tampouco seja digno de sua ternura. Ponto fraco. Entretanto,
Silene é seu carrasco e basta um golpe para que todo moralismo que se tinha
naquela casa dê lugar ao escracho, à depravação e a latente realidade de uma
sociedade sem máscaras. “Nós podemos finalmente cheirar mal e apodrecer”.
Diante de um personagem tão
complexo, me vi diante de um oceano: aquilo era muito mais do que eu podia
conter; tive medo – como todo hidrofóbico. O medo não foi embora. Ainda receio
nas interpretações psicológicas que faço, assim como deixar a desejar na
interpretação cênica de um personagem que ainda não compreendi – e, talvez,
seja essa a intenção do “eterno menino”: ser uma incógnita (poético, não?). Não
sei atuar. Não me condenem por isso: o teatro não é a minha zona de conforto
(nem de competência); mas, mesmo assim, o desafio que nos move. Aceitar esse
papel me pareceu tão absurdo que, de repente, me pareceu um convite para dançar
– convite aceito.
Para me inspirar no modo de agir
e ser do personagem, usei três referências como base: “Mestre José Amaro”, o personagem infantil “Eufrazino” e o meu
professor de química (Sabino). “Mestre José Amaro” é um personagem do livro Fogo Morto (José Lins do Rego) que me
inspirou por de tratar é um seleiro, machista, autoritário e impaciente com sua
filha, uma moça de 30 anos que não se casou; “Seu” Noronha é contínuo da câmara
e tem quatro filhas que não se casaram. “Eufrazino” é um personagem da série Looney Tunes que compartilha com o meu
personagem o fato de ser pouco inteligente, instável, arrogante, bipolar. Do
meu professor de química roubei os trejeitos: sua imposição, seus vícios
linguísticos; aproveitei dele suas características que mais me atentaram no
modo de andar e de gesticular quando ambos (o personagem e o professor) estão
irritados: um leve aquecimento. Aquecer para decompor. Pirólise.
Construir esse personagem não foi
fácil: uma dança. Dançando, em tempos e em contratempos, chegamos perto de
materializar os devaneios, as divagações, as genialidades de um autointitulado “Anjo
pornográfico”. Imersos em inconstância, procuramos obter “brilho definido”
(palavras do viajante Caetano) para irradiar teatro ou simplesmente queremos
extrair e refinar um mel de suas valsas. Valsas de inconstância. Doces valsas.
15 anos, estudante. Ator sem potencial. Arrogante, irritado e nada modesto. "A realidade não importa. A realidade não existe"
Muito fera! Sinto uma pitada de Santiago Nazarian.
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